Por Rubem Amorese
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela — João 1:1-5
Os cristãos se orgulham de ser gente de palavra: gente que diz a verdade; gente que não gosta de mentir nem da mentira.
Mais que uma imagem, mais que uma marca do Cristianismo, esse é um valor cristão. E, de fato, ele provém tanto de recomendações bíblicas, sobre um sim que seja sim e um não que seja não, sem subterfúgios, quanto do elogio bíblico àquele que jura com dano próprio e não se retrata. O dever de dizer a verdade e a condenação da mentira são temas bíblicos.
Essa tradição de ser gente de palavra pode vir, também, do simples fato de prezarmos a Palavra de Deus, que se propõe como “a verdade”. Seríamos, então, gente da Palavra.
Vale considerar, entretanto, uma outra origem para essa tradição cristã: a própria identidade de Jesus. Ele era a palavra. Mais precisamente, o Verbo de Deus. Uma palavra dinâmica, com poder de criar, iluminar, corrigir, trazer vida, reordenar o caos. Ela estava presente na criação e fez-se necessária novamente, quando essa criação se corrompeu, pela desobediência. Foi quando ela habitou entre nós.
Se cremos que somos cristãos por sermos seguidores de Cristo, tendo recebido dele mesmo nossa identidade missionária: “assim como o pai me enviou eu vos envio a vós”, então devemos fazer o que ele fez e derivar nossa missão da dele. O que dizer, então, dessa sua natureza de “Verbo de Deus”? Talvez, aqui, devêssemos tomar cuidado, pois ser o Haja de Deus era uma prerrogativa exclusiva da divindade que residia nele.
Bem, com todo o cuidado, gostaria de propor o pensamento de que o próprio Jesus nos ensinou sobre o poder da nossa palavra, fosse para expulsar demônios, fosse para curar, fosse para confortar, profetizar, admoestar etc. E ouso pensar que Deus nos deu esse ministério, o mesmo que incumbiu ao seu Filho, a saber, o ministério da reconciliação. Recebemos então, na condição de colaboradores, o mesmo ministério que Deus exerceu em seu Filho (2Co 5: 18, 19). E certamente os mesmos recursos espirituais para o exercer.
Ouso lembrar que, como Jesus, recebemos a palavra da reconciliação — “E nos confiou a palavra da reconciliação”. Não é assim que se entende que a fé venha do ouvir a palavra de Deus? E como ouvirão se não a proferirmos? E quem haverá de pregá-la, senão os cristãos, as testemunhas do Cordeiro?
Não quero dar a estes pensamentos um tom ufanista. Ao contrário, meu sentimento é de temor pela responsabilidade implicada. Aquele a quem muito foi dado muito será cobrado. Talvez seja também por isso que Jesus tenha dito que prestaríamos conta, no Dia do Juízo, de toda a palavra frívola que proferíssemos (Mt 12:36, 37).
Se existe, então, poder em nossas palavras, torna-se imprescindível resgatarmos o cuidado com o que dizemos. Gente da palavra não diz frivolidades, não mente, não se salva de situações difíceis com meias-verdades, não pragueja, não fala palavrão, não blasfema, não conta anedotas indecentes. Por quê? Primeiro, porque tem mandamentos expressos a esse respeito. Segundo, porque agora entende que suas palavras têm o poder de mediadoras da realidade. Ou seja, certas realidades, ao serem nomeadas, ao serem reveladas pelas palavras que as descrevem, são trazidas à vida; à consciência; à existência. Não me refiro a milagres e muito menos a mágicas. Refiro-me ao processo de conscientização que a linguagem permite. Em especial, por meio das palavras. Elas não somente nos desvendam o mundo como nos inserem nele.
Exemplificando com a lista acima, a respeito de coisas que gente de palavra não faz, diríamos que uma piada indecente traz à luz uma perversão (normalmente sexual), com conotação humorística. E o caráter engraçado torna aceitável a imagem indecente. Ao introduzi-la numa conversa, estamos dizendo “haja” a um monstro bonito; estamos dizendo, também, que ele é inofensivo porque é engraçado e, portanto, aceitável, como ferramenta de socialização, e que pode viver entre nós, desde que façamos aquela expressão de divertidamente escandalizados com a ousadia de quem trouxe o monstro à existência.
Do lado positivo, gente da palavra profere palavras de vida e não de morte; palavras de reconciliação e não de separação; palavras de santidade e não de perversão; palavras de ânimo, de conforto, de alegria, de fé, de sabedoria, de perdão, de esperança.
Gente da palavra abençoa. Até aos seus inimigos. Gente da palavra nunca define um filho com palavras do tipo: “você não presta!”, “você não vai dar nada na vida!”. Na verdade, não diz isso para ninguém. Nunca menospreza, diminui, calunia, ridiculariza. Para Jesus, isso é uma forma disfarçada de homicídio. “...e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo” (Mt 5:22).
No programa “Toma Lá, Dá Cá”, da TV Globo, uma das cenas “hilárias” que não podem faltar é o momento em que Mário Jorge olha para sua filha Isadora —, uma jovem de poucos recursos intelectuais, sempre envolvida com pequenos delitos e encarregada das falcatruas da família —, e repete o bordão: “Mau caráter!” A parte variável, que se segue, é algo assim: “Quando você nasceu, eu sabia que você ia ser uma delinquente compulsiva. Eu peguei você no colo, vi seus olhinhos juntos e falei pra sua mãe: isso vai ser um grande problema!”. É bom lembrar que a arte imita a vida, também no que ela tem de mais sombrio.
Se entendemos que a palavra é mediadora (construtora ou destruidora) da realidade humana; que é capaz de iluminar ou de trazer trevas, se o seu uso é tão sério ao ponto de ser a língua que a profere o leme do navio, então, ser gente da palavra é ser gente que a preza, como Jesus o fazia. É ser gente que sabe que não deve ter na boca palavras torpes, “e sim unicamente a que for boa para edificação, conforme a necessidade, e, assim, transmita graça aos que ouvem” (Ef 4:29).
Ao povo da Palavra; a essa gente de palavra, deixo uma paráfrase do apóstolo Paulo: “Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento e o que saia da vossa boca” (Fp 4:8).
Que Deus tenha misericórdia de nós e nos anime a revitalizar tão caro e elevado padrão. Que sejamos capazes, cada vez mais, “de falar entre nós com salmos, entoando e louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais, dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 5:19,20). Sabendo que essas palavras podem lançar as bases de uma nova civilização: o reino de Deus entre nós, navegantes do Século XXI.
Esta é uma daquelas meditações que nos fazem pensar e repensar as nossas atitudes e as nossas palavras.
ResponderExcluirJeasí Moraes (jeasi@ig.com.br)