Por: Luiz Sayão
As palavras de Naum 1.3 ecoam desde o juízo divino que caiu sobre Nínive no século VII a.C. Mais do que nunca elas nos falam nestes dias difíceis.
Nem todos imaginam que a perspectiva do homem bíblico do Antigo Testamento possui total distinção da do homem contemporâneo secularizado e humanista. A antigüidade, como qualquer época da história humana, estava acostumada a catástrofes de todo tipo, inclusive as naturais. A revelação bíblica do AT distinguia-se da visão de mundo naturalista do paganismo do antigo Crescente Fértil. No paganismo a natureza era divinizada, enquanto que em Israel YHWH tudo dominava e era transcendente em relação ao mundo fenomenológico. Apesar dessa polarização, ninguém partia do pressuposto de que o mundo estava sob o controle do homem e que as coisas deveriam prosseguir o curso planejado e esperado pela razão humana, que “entendeu as leis do universo” e é capaz de dominá-lo com maestria. Os antigos sentir-se-iam à vontade, em certo sentido, com algumas idéias de Kierkegaard, de Heidegger e até de Sartre. Eles compreenderiam a tremenda limitação do ser humano, sua impotência diante da mundo “estranho” que os cerca. Conscientes da realidade, os pagãos temiam os desastres naturais, atribuídos a divindades específicas. Baal e Astarote dominavam o cenário da cultura cananita, assim como Oxóssi e Iemanjá tem expressão em parte da cultura brasileira. Os homens imaginavam-se à mercê dos deuses, que poderiam atingi-los a qualquer momento. O pensamento bíblico rejeitou a idolatria pagã e destacou que YHWH era o verdadeiro e único Deus. Por isso, os deuses pagãos eram apenas imaginação dos povos. Apesar disso, o israelita nunca atribuiu a elementos não divinos a origem dos fenômenos. Uma leitura atenta do Salmo 29 revelará a apologética contra o baalismo e a ênfase de que YHWH é o verdadeiro Deus das tempestades. A voz do SENHOR do Salmo 29 é o trovão que estronda de modo assustador. De modo gereal, o sofrimento causado aos homens tem origem no próprio Deus. Em Rute, o sofrimento geral (fome) e também a dor específica (de Noemi) tem origem no SENHOR.
Uma perspectiva teísta não tem outra alternativa. É impossível imaginar que um desastre natural, como um tsunami, não tenha a ver com Deus. Isso significaria que a natureza opera independentemente da ação divina. A idéia de que os homens têm direitos e que Deus deve ser culpado pelos sofrimentos que lhes é causado marcam a tradicional revolta dos ateus e agnósticos que se limitam a ver a vida “debaixo do sol”. Por isso, em última instância, Deus tem o controle de tudo e de modo direto ou indireto (permitindo) é o “responsável” pelos desastres naturais.
Se pudéssemos conversar com o homem bíblico do Israel antigo, talvez não fosse tão difícil entender o seu raciocínio. Ele saberia, por exemplo, que Deus tinha sido responsável de modo direto por intervenções meteorológicas que causaram muitas mortes, como foi o dilúvio e a abertura (e retorno das águas) do mar Vermelho. Além disso, ele entenderia também que Deus é quem tira a vida de todos (Dt 32.39 – “eu mato, e eu faço viver”). Deus dá a vida e a tira. Em certas ocasiões, ele convoca algumas criaturas um pouco antes do momento esperado. O homem que mata é assassino, pois ele não pode tirar o que ele nunca deu. Mas este não é o caso de Deus. Por isso, nossos avós gostavam de dizer que um falecido havia sido “recolhido”.
O homem bíblico também geralmente costumava entender que tais atos divinos poderiam ser um lembrete ao ser humano de sua fragilidade e de sua pecaminosidade. A leitura dos salmos revela isso com freqüência (veja o Sl 130). A relação sofrimento e pecado ou fragilidade era comum. Os israelitas até cunharam o termo ’enosh para falar do homem como criatura frágil. O termo distingue-se de ’ish e de ’adam, e define o homem em sua distinção com relação ao divino.
Por isso, se um homem bíblico soubesse que a área atingida pelo tsunami é uma das regiões mais pagãs do mundo, é um local onde milhares de cristãos são perseguidos e assassinados, e também é um dos locais onde há maior exploração de prostituição infantil do mundo, ele consideraria a possibilidade de uma intervenção divina na região. Isso, sem contar com o fato de que ele não conheceria a escatologia neotestamentária (Mt 24) que prevê tais desastres, nem sabia das previsões dos geólogos de hoje. Se tivesse tais informações, ele talvez cresse que o tsunami seria um fenômeno bastante esperável.
O mais surpreendente é que ele, com sua perspectiva poli-alética, iria sentir muito com o sofrimento e chorar com toda a dor. Ele lidaria com a realidade de que Deus é ao mesmo tempo soberano, tem o direito de julgar e punir, tem amor por suas criaturas e sofre com elas e por elas, por causa de sua misericórida. Mas, talvez ele tivesse perguntas difíceis de serem respondidas, complicadíssimas até para qualquer visão “panto-alética” do mundo. Ele perguntaria por que um mundo que pratica 46 milhões de abortos por ano, defende todo tipo de abominação sexual, pratica escravidão para aumentar o lucro de quem tem recursos demais, que se cala diante de uma indústria global de tráfico de armas, drogas e prostituições fica tão “revoltado” com Deus pelo que aconteceu. Ele não entenderia onde está a lógica de quem defende o assassinato como direito (aborto e guerra) e “revolta-se” contra Deus.
Além disso, o homem bíblico também teria outra pergunta muita difícil: Diante de tanta maldade e injustiça, por que o Deus onipotente e justo não envia um tsunami por dia (ainda que morram 150.000 pessoas diariamente)? Talvez sua mente se consolasse com a as palavras do salmista: “a misericórdia do SENHOR dura para sempre” (Sl 136). Que bom! Deus resolver esperar um pouco mais! Ainda há chance de arrependimento e retorno!
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